A ação do tempo na prática do olhar museológico

A equipe do Espaço Amarelo preserva e promove mostras rotativas do Acervo IAED (Instituto de Arte, Educação e Desenvolvimento), e também promove mostras rotativas da coleção incluindo a exposição de obras que passaram por processos de restauração.

Recentemente inauguramos uma nova exposição de esculturas, instalações, gravuras e desenhos.   O Acervo IAED, que veio se formando desde 1960, sofreu ações do tempo. Quando afirmamos “o sofrer” enquanto verbo transitivo, tendemos à compreender tal sentido comumente de maneira pejorativa: “o sofrer” enquanto algo negativo.

 Percebemos as obras e o entorno; os tijolos, as paredes, as plantas, todas as marcas de fruição geradas por essas diversas matérias em constante contato e interação com o ambiente: rachaduras, veios, vestígios, sombras, fissuras, curvas, manchas. Uma sensação da presença da vida e da entropia, essas entidades inseparáveis e presentes em todos os cantos à todo tempo, deixam marcas e fazem história.

 Decidimos deixar essa história evidente. Não acobertá-la.

Segundo Cesare Brandi (1906-1988) – um importante teórico de restauração da história – uma das principais peculiaridades da obra de arte está relacionada com o momento no qual esta passa a fazer parte do mundo, do particular ser no mundo de cada indivíduo, evidenciando a aceitação da arte enquanto produto da espiritualidade humana. Nesse sentido  se torna essencial, durante um processo de restauração, visar o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte evitando cometer um falso artístico ou um falso histórico, de  maneira a impedir o apagamento total de traços da passagem da obra de arte no tempo (BRANDI,p.33)

 

“Uma obra de arte, não importa quão antiga e clássica, é realmente, e não apenas de modo potencial, uma obra de arte quando vive em experiências individualizadas. Como um pedaço de pergaminho, de mármore, de tela, ela permanece (sujeita, porém, às devastações do tempo) idêntica a si mesma através dos anos. Mas como obra de arte, é recriada todas as vezes que é experimentada esteticamente.” (BRANDI, p.28)

 

 A instalação em destaque, do artista Orlando Marques (1963, Santa Bárbara D´ Oeste – SP), consiste em um conjunto de miniaturas de cadeiras feitas de ferro e solda que variam em seus tamanhos.  Orlando Marques é um artista plástico experimental e performático. Ao montarmos a instalação nos deparamos com as marcas do tempo nas miniaturas de suas cadeiras:  as pernas longilíneas levemente envergadas. Levantou-se a questão: aceitar ou não esse efeito do tempo? Compreendê-lo enquanto defeito, imperfeição ou enxergar a beleza desta marca de vida atuante sobre o material?  Segundo as palavras do artista Orlando Marques:

Tomo qualquer objeto como pretexto. Fecho o círculo à partir da reação de cada pessoa. Surge um novo espaço, perguntando e respondendo, abre um leque de enigmas. Ilustrar não é minha intenção, apenas aponto e sugiro tempos.

Ao considerar a questão do tempo enquanto algo aberto e passível de transformação contínua, o artista aproxima a reflexão acerca do desprendimento de um ideal a ser preservado e desta maneira valoriza os enigmas enquanto formas de interação entre espaço, tempo, e as vivências de cada um.

 Podemos enxergar tal fato a partir de uma perspectiva filosófica oriental chamada Wabi-Sabi. O Wabi-Sabi representa uma abrangente visão de mundo japonêsa que consiste em uma visão estética centrada na aceitação da transitoriedade e imperfeição. Essa idealização artística  foi desenvolvida por volta do século XV no Japão, durante o período Muromachi, na cerimônia do chá executada por Sen no Rikyu com base nos ideais do Zen Budismo.  Envolve uma maneira de viver que se concentra na busca da beleza das imperfeições da vida e na aceitação pacífica de seus ciclos naturais de crescimento e declínio. Pode-se dizer que é uma apreciação estética do despojamento, muito atrelada ao desapego de um ideal de perfeição estético cultuado pela cultura ocidental,  o qual provém da influente cultura Greco-Helênica.  Junto a aceitação da imperfeição, estão também atributos como a assimetria, a irregularidade, a modéstia mesmo em coisas repletas de falhas e rachaduras, ou seja, marcas do tempo.  A palavra “wabi” refere-se a simplicidade, a elegância e ao rústico, enquanto “sabi” à beleza da idade, do desgaste e das rugas do tempo.

 Outra artista presente na mostra é Lily Simon (1940, Barra Bonita/SP). Uma peça escultórica de madeira que se assemelha a um totem primitivo exalta a linguagem da artista que apresenta em suas obras um fator filosófico constante correspondente à estética da precariedade: uma forma de pensar o material abandonado pelos meios sociais, reciclando-o de maneira à transformar o insignificante em novos significados. A peça compõe uma instalação junto a duas telas de grandes dimensões onde se encontram registros de seus grafismos de maneira a criar linhas e espaços que remetem ao primitivo das cavernas, tendo em vista também as cores terrosas com que a artista escolhe trabalhar e preencher a superfície dos suportes: telas, madeiras, chapas de metal. Vemos que a marca do tempo é um elemento da poética do seu fazer e em diálogo com a filosofia “wabi-sabi” em termos da valorização de registros de um território estético a ser explorado: a precariedade enquanto valor simbólico.

Além desses artistas, duas serigrafias de Tomoshige Kusuno (Yubari, Japão, 1935) apresentam temas distintos e em suportes diferentes segundo o intuito curatorial  de ilustrar o conhecimento do artista acerca das técnicas de serigrafia. Kusuno costuma explorar nelas a figuração onírica, algo como paisagens fantásticas com especial ênfase  às relações entre cores e formas  e o purismo precedente deste jogo.

“Desde que chegou ao Brasil em 1960,  Tomoshige Kusuno firmou-se como presença marcante em nossa produção de artes plásticas. Inquieto e inovador, ligado à vanguarda mas também à tradição, talvez tenha confundido alguns críticos e apreciadores de arte pelo modo como evoluiu em sua trajetória. Principalmente pelo gradativo abandono da fascinação do estético em favor da densidade, do conteúdo filosófico da obra e da coerência de um projeto que não é apenas de pesquisa formal, mas de revelação do mundo e descoberta de estruturas ausentes.”  

 Claudio Willer

Acompanhe o blog do site do Espaço Amarelo e confira mais sobre cada artista presente na exposição: Aldemir Martins, Tomoshige Kusuno, João Rossi, Maria Botelho de Souza Aranha, Orlando Marques, Francisco Stockinger, Lily Simon,  Cecília Stelini, Nuca de Tracunhaém, Alfredo Rizotti, G. Dorbels, Angela Maino,  Cristina Pollesel e Mário Gruber.

 Abaixo seguem algumas imagens. Esperamos que as apreciem sob a influência desse raro olhar Wabi-Sabi e que venham sentir e ver de perto a atmosfera estética da exposição.

Sofrendo com o tempo

Autoria: Mayra Rebellato

Revisão: Heraclio Silva

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